Em janeiro de 1929, Mário de Andrade esteve em Catolé do Rocha, no sertão da Paraíba. Numa cidade “desfalcada” pela miséria, ficou desconcertado com o canto de uma pedinte que transmitia “uma dor magnífica, mesquinha, triste mesmo”, anotou na época. A canção o marcou tanto que, 11 anos depois, em 1940, ele escolheu cantá-la para o linguista americano Lorenzo Turner, que o visitou enquanto fazia pesquisas no Rio. Revelada em abril deste ano, a gravação em que Mário reproduz com seu sotaque paulista os versos da pedinte paraibana (“Deus lhe pague a santa esmola/ Deus lhe leve no andor/ Acompanhado de anjo/ Acirculado de flor”) é o único registro conhecido da voz do autor.
Em sua passagem por Pombal, apenas 50 quilômetros ao sul de Catolé do Rocha e a 400 de João Pessoa, a Missão recolheu muitos cantos de pedintes semelhantes aos que impressionaram Mário na década anterior. Mas também encontrou uma rica cultura de violeiros, que gravaram toadas, modinhas e chulas. E se deparou com a forte presença dos Congos, dança dramática ligada à cultura negra e à história da escravidão no Brasil.
Pombal hoje não exibe a miséria que Mário e a Missão viram no sertão paraibano. Com uma economia que gira em torno do comércio, e 4.606 famílias atendidas pelo programa Bolsa Família (o equivalente a cerca de 15 mil dos 35 mil moradores), é uma movimentada cidade às margens da BR-427.
A cerimônia dos Congos registrada em 1938 ainda acontece, praticamente da mesma forma, todo mês de outubro, na Festa do Rosário, que atrai centenas de visitantes a Pombal. O ritual é realizado pela Irmandade do Rosário, tradicional confraria negra que existe em várias partes do país pelo menos desde o século XVII, quando funcionava como congregação religiosa e associação de auxílio mútuo entre escravos. Seus integrantes eram adeptos do culto católico a Nossa Senhora do Rosário, levado à África por missionários portugueses. No Brasil, mesmo em tempos de escravidão, as Irmandades do Rosário de cada local costumavam promover cerimônias para coroar reis negros, que muitas vezes tinham papel político real nas comunidades de escravos.
A dança dos Congos é a encenação festiva dessa espécie de corte africana no exílio, com personagens como o rei, o secretário, o embaixador e os súditos. Usando trajes azuis, vermelhos e brancos, calças largas e chapéus em forma de cone, os 11 participantes cantam, dançam e tocam maracás, acompanhados por violão e sanfona. O que torna o grupo de Pombal singular é a mescla de cenas dramáticas, com diálogos entre o rei e outros personagens, e trechos musicais, com passos ora lentos, ora vigorosos. Nas letras, entre alusões a Nossa Senhora do Rosário e ao rei negro, surgem evocações da África: “Meus pretinhos dos Congos/ Donde vem nossa hora/ De embarcar pra Aruanda/ Vamos pra Angola”.
O grupo tem estandartes com as fotos dos Congos feitas por Luís Saia em 1938. Numa delas, Geraldo de Sousa Santos, de 53 anos, aponta o tio, Francisco de Sousa, que o ensinou a dançar. Geraldo fez o mesmo por seus dois filhos, Geraldo Santos Filho e Michel Platini Santos, de 29 e 27 anos. A faixa etária dos integrantes vai dos 88 anos de João Raimundo dos Santos, rei da Irmandade do Rosário, aos 8 anos de Jadson Santos Cesario.
— Estamos preservando as tradições negras de Pombal — diz o rei dos Congos, Miguel Ferreira, de 45 anos. — Quando a gente canta as palavras africanas, mesmo as que quase ninguém entende mais, sente a importância dessa herança e pensa por quantas gerações isso terá passado.
A festa anual acontece em torno da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, construção de estilo barroco erguida em 1721. Os Congos são acompanhados por outros grupos locais, como o Reisado e os Pontões, também ligados à Irmandade do Rosário, cuja existência em Pombal é documentada desde 1888, mas que provavelmente já funcionava ali durante a escravidão.
— Com o trabalho da Irmandade, hoje o negro é mais respeitado, apesar de a gente saber que muita gente tenta diminuir isso. Se alguém nos repudia, mas é abraçado pelo nosso trabalho, o preconceito vai sendo mudado — diz o secretário da Irmandade do Rosário de Pombal, Edmilson Neri, de 53 anos.
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